sábado, 4 de janeiro de 2025

O Alistamento de Fernão

 


No clarear cinzento do dia, o vento soprava forte, cortando a pele como lâminas afiadas, e o cheiro de maresia impregnava o ar, trazendo com ele o presságio de algo grande, algo que alteraria o curso das vidas que se preparavam para partir. Com as mãos calejadas pelo trabalho diário nas redes, sentiu o peso da decisão em seu peito como um peso de chumbo. Ele não era mais o simples pescador da vila costeira. Aquele mar que sempre fora seu companheiro agora o chamava para o desconhecido.

Aquela manhã não era diferente de outras em que os pescadores se reuniam no cais, prontos para lançar suas redes ao mar. Mas algo se desenrolava nas sombras, uma mudança no ar que tornava o normal algo de outro mundo. A expedição que se preparava para zarpar estava sendo formada, e as palavras de quem se atrevia a falar nos mercados e tavernas indicavam que grandes viagens estavam prestes a ser feitas. A esperança de riquezas, terras desconhecidas e glórias para quem se aventurasse além do horizonte fazia com que os mais ousados se alinhassem. E diante da dor que apertava seu coração, tomou sua decisão: partida.

Ao chegar no cais, as primeiras imagens que viu foram de homens diversos, cujos rostos carregavam histórias de marginalidade e ambição. Não eram mais os rostos familiares dos pescadores que ele conhecia, nem os rostos dos marinheiros que cruzavam ocasionalmente o litoral. Eram homens com olhos vazios e corações endurecidos, muitos dos quais pareciam carregar mais o peso de suas condenações do que o brilho das esperanças de um novo começo. O vento soprava com um odor diferente naquele dia, como se as marés trouxessem com elas algo mais sombrio e, ao mesmo tempo, irresistível.

Lá, entre os outros, viu figuras que eram ao mesmo tempo fascinantes e assustadoras. Um grupo de degredados, homens que haviam sido expulsos da sociedade, cujas vestes manchadas de sujeira e suor escondiam os estigmas de seus desvios passados. Alguns se moviam uma sutileza soturna, outros com um olhar vazio de quem sabia que não havia mais nada a perder. Mais afastado, um mercenário com cicatrizes de batalhas passadas estava em pé, ajustando sua espada, enquanto observava impávido todo movimento estacionado em sua atenção. Seu olhar era calmo e sua postura silenciosa, como se soubesse que aquele oceano, com todos os seus mistérios, não representava um desafio maior de ter vivido a degeneração humana de batalhas passadas. Não muito longe dali um marceneiro, com as mãos ásperas e o olhar tímido de quem sempre trabalhou na solidão das oficinas, mexia em uma das cordas do navio, como se esperasse encontrar ali o seu lar conhecido.

Era um cenário de homens falidos, homens fugindo de algo, ou buscando propósitos maiores que sua própria ambição e orgulho. Alguns, como os bandidos fugitivos da justiça, viam naquela viagem uma chance de escapar das correntes impostas pelas suas ações. Outros, como os mercenários, queriam oportunamente vender sua lealdade, em troca de riqueza e poder. Todos, no entanto, estavam unidos por uma única razão: a promessa do desconhecido além-mar, onde a redenção e as riquezas pareciam estar à espera de quem ousasse atravessar o vasto oceano, e enfrentar o conforto e estabilidade dos ingênuos.

Ele, que sempre vivera à sombra do mar, sem nunca questionar sua posição ou seu destino, agora estava diante de um oceano de possibilidades e de destinos que se cruzavam. Mas a sua decisão estava tomada. Ele não era como eles. Ele estava ali por algo mais simples e profundo: a esperança de encontrar sua liberdade, à qual colocou nas mãos da impossibilidade sonhada.

Ao se aproximar do oficial responsável pelo alistamento, sentiu a tremedeira nas mãos, um reflexo de sua própria insegurança diante da grandeza do que estava prestes a fazer. O homem, com o semblante severo e a capa de comandante de expedições, olhou-o com um olhar inquisitor. "Você está ciente do que vai enfrentar?", perguntou o oficial, sem disfarçar o ceticismo. O marinheiro sentiu o peso daquela pergunta, como uma imensa corrente presa aos seus pés, mas, com um olhar firme, respondeu: "Estou ciente, senhor.”

O alistamento foi breve. Com o coração batendo forte e o peso do futuro nas costas, recebeu seu posto: vigia noturna. Um trabalho solitário, mas necessário, e que simbolizava o tipo de sacrifício que ele estava disposto a fazer. Conforme se afastava, a visão do cais com seus homens tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais a ele o acompanhava. Ele sabia que, ao deixar para trás a costa familiar, se lançava em um mar de incertezas, onde o destino seria escrito pelas mãos do vento, das ondas e da própria coragem. Ele, como os outros, já não pertencia mais à terra. Eles estavam todos em busca de algo que só o mar poderia oferecer: a possibilidade de encontrar um novo começo.

Fernão olhou para o horizonte. O mar, sempre imprevisível, parecia chamá-lo com sua imensidão. E assim, com o coração pesado, mas decidido, ele subiu a bordo, sabendo que não havia mais volta.

O seu destino, agora, estava no oceano, e sua busca, em um porto seguro.

por João Zanela

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A Menina que Vendia Pão de Mel

 


Ao abrir os olhos em seu quarto, Bella percebia os suaves raios de sol que clareavam seu quarto, pelas frestas da janela. Já era de manhã. Esticando seu corpo, pisava no chão com os pés descalços e se dirigia ao banheiro. Agilmente, tomava banho, escovava os dentes, penteava seu cabelo escuro, prendendo-o em um rabo de cavalo, e vestia o uniforme de sua escola, como parte de seu pequeno ritual matinal. Como sua mãe, Bella sempre fazia questão de estar apresentável. Estando pronta, ela seguia para o quarto de seu irmão mais novo e, como irmã mais velha, orientava-o a não se distrair para vestir o uniforme.

 Na mesa, o café da manhã já estava preparado por seus pais, que também estavam prontos para ir trabalhar no centro da cidade. Bella e Pedro seguiriam para a escola, pois estudavam de manhã. Bella auxiliava seus pais nas tarefas domésticas, sempre antecipando pequenos afazeres que facilitavam a organização e limpeza de sua casa. Ela sempre teve participação ativa no cotidiano de sua família. Todo o seu universo conhecido estava, de alguma forma, ligado à rotina de sua casa. O som da água corrente do chuveiro, a visão de Pedro deitado na cama, enrolado em seu cobertor, sua mãe preparando ovos mexidos e seu pai tomando café davam-lhe a sensação leve e precisa do funcionamento do mundo.

 Sua escola fica próxima de sua casa, fazendo o caminho de ida e volta, uma extensão da fluidez em movimentos sonoros de seus dias sinfônicos. Na escola, Bella demonstrava interesse pelas matérias e atividades desenvolvidas pelos professores, participando ativamente das aulas. Seus dias comuns são deveras preenchidos pelo cálculo, pelo texto, pela geografia da escola.

 Um dia, ao ajudar sua mãe na cozinha, Bella observou que a receita de pão de mel que a mãe sempre fazia satisfazia ela e suas amigas na escola. Quando saia do forno, o cheiro doce e acolhedor do mel e das especiarias se espalhava pela casa, trazendo à tona memórias de risos e suas amigas. A partir deste momento, Bella começou a aprender a arte de fazer pão de mel. A princípio, ela fazia para a família e os amigos próximos. O gesto, simples, mas repleto de carinho, começou a ganhar um significado diferente para ela.

 Logo, sua mãe percebeu que Bella estava mais animada e falava sobre a possibilidade de vender os pães de mel. Sua ideia era usar o dinheiro para ajudar nas suas pequenas despesas, pois sendo uma adolescente, surgiam necessidades especiais desta idade. Embora ainda jovem, Bella tinha uma boa vontade própria de realização, sabendo que poderia fazer os pães de mel, porém, sem deixar de lado sua rotina escolar e as responsabilidades na sua casa. Bella começou a fazer mais pães de mel, aprimorando a receita e criando novas versões. Ela embalava as guloseimas com carinho, sempre com uma fita, um adesivo, e em alguns até bilhetinhos que tornavam a embalagem tão especial quanto o próprio pão de mel.

 As vendas começaram para amigos e conhecidos. A notícia de sua doçura se espalhou como um rumor suave, e Bella encontrou mais formas de encaixar a venda de pães de mel, tornando sua nova atividade mais do que um simples negócio; para Bella, representava a maneira como ela estava se conectando mais profundamente com as pessoas ao seu redor. Era uma forma de distribuir carinho, algo que ela já fazia em sua casa, agora ampliado esta ligação para outros ao seu redor. Bella não apenas vendia um doce, ela compartilhava uma parte importante de si mesma — sua dedicação, sua habilidade, seu trabalho e, acima de tudo, seu amor pela família e pelas coisas da vida. Cada cliente que recebia um pacote de pães de mel sentia que, por trás daquela simples receita, havia um gesto de gentileza que fazia o dia um pouco mais doce.

 À medida que os dias passavam, Bella foi aprendendo a equilibrar suas responsabilidades. Ela continuou a ser a irmã mais velha atenta a Pedro, a filha que ajudava nas tarefas domésticas e a estudante que se dedicava à escola. Mas agora, ela também era a menina que vendia pão de mel, uma jovem que começava a perceber que o valor das coisas não estava apenas no que se recebe, mas na doçura do que se pode oferecer aos outros.

 Em um certo fim de tarde, quando o sol se inclinava lentamente no horizonte alaranjado, Bella se pegou olhando pela janela do seu quarto. As cores do céu estavam vivas, e o cheiro do pão de mel, que ela acabara de tirar do forno, preenchia o ar. Ela sorriu, sentindo que, de alguma forma, estava mais conectada ao mundo ao seu redor. Como nas viagens e leituras... Um intervalo entre os reflexos de seu pensamento e a nítida compreensão da vida que fluíam como barcos de papel em um tanque d’água numa borda infinita, como um poente suspenso no ar.

 Bella sentiu que, mesmo nos momentos mais simples da vida, há sempre algo doce a ser compartilhado.

 E, talvez, seja isso o que realmente importa.

 por João Zanela

sábado, 21 de dezembro de 2024

Carta de Fernão para Amélia


Minha querida Amélia,

Escrevo estas palavras com o coração tão pesado quanto as marés de um mar tempestuoso, mas impelido por um anseio maior do que qualquer fardo que já suportei. Eu, Fernão de Castela, jamais poderia prever que minha alma seria tomada por algo tão grandioso e inatingível quanto o meu amor por você.

Cada vez que seu olhar encontra o meu, sinto-me tão desamparado quanto as ondas que se quebram infinitamente nas rochas — destemidas e sempre retornando. Nos momentos tranquilos dos meus dias, quando a solidão sussurra aos meus pensamentos, a lembrança do seu sorriso ilumina os recessos mais escuros, como uma estrela guia na vastidão da noite desconhecida.

Amélia, minha amada, sei que sou apenas um homem comum aos olhos do mundo — um pescador sem riqueza ou título, sem terras para reivindicar, nem grandezas materiais a oferecer. E, no entanto, meu amor por você é tão vasto quanto o próprio oceano, um sonho tão lindo quanto impossível. Seu pai, o nobre Don Juan, jamais aprovaria esse amor. E, embora eu possa lutar contra a mão cruel do destino e da minha origem, não posso negar que a balança desta vida pesa muito contra mim. Meu coração, acostumado apenas ao fluxo e refluxo do mar, agora se encontra enredado em uma maré da qual não há escapatória: o desejo pelo que não posso ter e a dor de saber que nunca serei digno de você.

Mas o que é o amor, senão a mais inexplicável das forças? Uma chama que queima, mesmo sabendo que a noite virá para apagá-la. Meu amor por você não se curva às regras de status ou posição, nem se submete às expectativas alheias. Ele simplesmente existe — puro e tão vital quanto o ar que respiro.

Saiba disso, Amélia: meu amor por você transcende o comum, alcançando além do tangível, no reino do eterno. Se estivesse em meu poder, eu guardaria seu coração como quem guarda uma pérola rara e preciosa, estimando-o no silêncio da minha alma, como um segredo compartilhado apenas com meu próprio coração.

No entanto, não sou tolo quanto ao meu destino. Os caminhos de um pescador e os de uma filha de nobre não foram feitos para se entrelaçar. Talvez, em outro tempo, em outro mundo, nossos corações possam finalmente se encontrar e pulsar como um só.

Até esse dia, tudo o que posso oferecer são estas palavras, fluindo eternamente como as ondas na praia. Que os ventos carreguem o eco do meu amor por você. E, se o destino sorrir para nós, eu olharei em seus olhos e declararei, sem hesitação, que meu amor por você resistiu a todas as tempestades.

Até então, minha amada, eu permaneço aqui, entre o mar e a solidão, pensando para sempre em você, no que não pode ser, mas sempre permanecerá.

Seu eternamente,

Fernão de Castela

Vila de Castela, 19 de outubro de 1526

Fernão de Castela

 

Pela brisa úmida do litoral vinham murmúrios e ecos de relatos, tão antigos quanto as pedras que formavam o próprio cais, histórias de descobertas maravilhosas, lutas sangrentas, mortes inevitáveis e vitórias gloriosas. Ouviam-se, ao longe, as narrativas contadas pelos homens de mar, aqueles que partiram além do horizonte, além do que os olhos podem alcançar, e retornaram com o semblante marcado pelas viagens inclementes, trazendo em seus corações o peso do desconhecido e nas palavras o sabor do imponderável.

As velas que partiam do nosso porto, guiadas pelo vento que sopraventava dos vastos mares desconhecidos, traziam ecos de terras nunca vistas, de povos estranhos e de seres de aparência fantástica, cujas formas desafiavam a própria natureza humana. Falava-se de homens com pés alados, de gigantes que erguiam montanhas com o simples mover de suas mãos, e de mulheres com olhos tão profundos quanto o abismo, capazes de ver através das almas e encantar os homens para dentro das águas. Havia quem jurasse ter avistado terras onde o sol não se punha, e outras em que o tempo fluía de maneira estranha, onde os minutos pareciam horas e os anos se desvaneciam como névoa ao amanhecer.

As caravanas de exploradores, vestindo-se com o couro de suas aventuras e os olhos carregados de esperanças e desespero, falavam com fervor sobre terras além-mar, onde os ventos sopravam com a força em homens que eram considerados deuses e os deuses tinham cabeças de animais. Esses valentes homens não falavam apenas de terras férteis e rios de ouro, mas também de terras malditas, onde as estrelas não brilhavam e os mares se cobriam de nevoeiro, tornando-se o lar de monstros mitológicos e forças que desafiavam a própria razão.

Às vezes, entre os altos mastros das caravelas que cortavam o céu com suas velas enfunadas, avistavam-se aves que cruzavam os ares. Seus gritos pareciam anunciar destinos misteriosos, e quando voavam entre os cabos e cordas dos navios, eram como presságios de algo além do visível. Ao entardecer, voavam rumo ao oeste, desaparecendo no horizonte, como se seguissem a rota de terra segura, um porto de paz que apenas os olhos ágeis poderiam enxergar, um refúgio onde o mar não traria mais tormentas.

Havia, também, as ervas flutuantes, que surgiam com o misterioso movimento das marés, como se a própria água da imensidão marinha quisesse nos mostrar um caminho. Eram como sinais inconfundíveis de que a terra firme poderia estar mais próxima do que a razão nos permitia acreditar. Algumas dessas plantas, com suas folhas verdes e seus cheiros inebriantes, vinham das correntes oceânicas que se estendiam para terras desconhecidas, flutuando com a graça de uma promessa, levando consigo o eco de terras intactas, onde ainda se poderia encontrar o impossível, o que a história ainda não ousava contar.

À medida que os ventos de leste traziam estas histórias, acompanhadas da espuma do mar que se quebrava nas pedras da costa, as vilas costeiras se tornavam centros de especulação e fervor. Cada relato que chegava aos ouvidos dos aldeões, pescadores e mercadores, acendia chamas de sonhos e desejos, mais vívidos e mais intensos, como se o próprio destino estivesse chamando os corações ousados para além do que se conhecia.

E assim, Fernão de Castela, que vivia à sombra dessas narrativas, sentia no ar o cheiro salgado do oceano misturado à promessa de uma terra além do horizonte. Sabia que o futuro, como o mar, era vasto e inexplorado, e que nossas caravanas, com suas velas enfunadas pelo vento, eram mais do que apenas embarcações; eram símbolos de uma busca imortal, uma busca que nos levaria, talvez, a conquistar o desconhecido ou, quem sabe, a sucumbir a ele.

Pela brisa úmida do litoral da Vila de Castela, os ventos traziam estas histórias de terras desconhecidas, mas nada do que se ouvia nas tavernas ou nos mercados se comparava ao tormento que ardia no peito de Fernão de Castela. Ele não era mais do que um simples pescador, nascido entre as rochas e redes de sua aldeia, onde o mar era sua única companheira. Mas seu coração batia por algo mais, algo que o mar não podia oferecer: o amor de Amélia, filha de uma das famílias mais abastadas da região.

Amélia, com sua pele clara como o alabastro e os olhos negros e brilhantes, era a joia da nobreza local. Sua beleza atraía olhares de todos os cantos, mas o coração da jovem estava, de algum modo, além da esfera do simples pescador. Fernão, com suas mãos calejadas pelo trabalho diário e os cabelos escuros ao vento, se via muitas vezes contemplando a figura de Amélia à distância, imaginando um futuro que parecia inalcançável.

Seu amor forte e silencioso como as marés que batem nas pedras da costa, encontrou um obstáculo insuperável na família da jovem. O pai de Amélia, Don Juan de Alvarado, um homem imponente e temido na região, nunca aceitara o fato de que sua filha pudesse amar um homem tão abaixo de sua posição social. Para ele, um pescador era apenas um trabalhador do mar, e um futuro com Fernão, pobre de bens e sem a nobreza que ele julgava essencial para o casamento de sua filha, era uma ideia insustentável.

Amélia, por mais que amasse o jovem, se viu impotente diante da imposição do pai. Suas lágrimas, nas quais ele via a dor de um amor impossível, não eram suficientes para quebrar as correntes da rigidez social que prendiam seu destino. Em uma tarde tempestuosa, após mais uma conversa cheia de dor e frustração, Fernão se afastou, decidido a não ser mais um espectador do sofrimento que ela também carregava.

Foi então que, olhando para o horizonte distante, Fernão sentiu um chamado, como se o próprio mar lhe sussurrasse promessas de um novo começo. Ele soubera das expedições que partiam de Castela, dos navios que se aventuravam rumo ao desconhecido, cruzando os mares que desafiavam o entendimento humano. O Oeste com suas florestas impenetráveis e riquezas não descobertas, parecia ser a resposta para o vazio que tomava seu peito. Não mais poderia viver à sombra de sua dor. Decidido a se afastar da terra que o rejeitava, e também de um amor que nunca poderia ser, ele optou por enviar uma carta à Amélia e seguir o destino traçado pelas velas dos navios que se preparavam para zarpar.

Na véspera de sua partida, quando o céu se tingia de vermelho como o sangue das feridas abertas, Fernão se dirigiu à praia, onde as caravelas já se encontravam ancoradas, prontas para cruzar o oceano. As velas se balançavam ao vento, rufando como tambores de guerra, como se convocassem os corações dos homens a seguir, sem questionar, sem hesitar. As ondas batiam agressivamente contra a areia, como se o mar, em sua vastidão, lhe oferecesse uma última chance de voltar atrás. Mas, com o coração pesado e a alma inquieta, Fernão subiu a bordo do navio, agora mais do que nunca movido pela esperança de que, do outro lado do mundo, ele encontraria algo mais do que o simples trabalho das redes, mais do que a solidão de seu amor não correspondido. Quem sabe, ele pensava, o destino estivesse preparado para ele de forma diferente. Quem sabe, em terras desconhecidas, ele encontraria a liberdade para ser quem realmente poderia ser.

O Virgen del Mar, o navio que o levaria ao desconhecido, era uma carraca robusta, com seu casco gastado pela experiência de muitas viagens. O capitão Montoya, um veterano das águas tropicais, estava ali, à frente de sua tripulação heterogênea, composta por homens de diversas partes da Espanha, assim como marinheiros estrangeiros, todos unidos pela promessa de riquezas e glórias. Fernão foi designado para a vigia noturna, uma tarefa que lhe dava uma sensação de pertencimento, mas também de solidão. Ali, entre os mastros imponentes e as cordas que se esticavam no vento, ele sentia a presença do mar, como uma entidade viva, que observava e aguardava. O oceano, vasto e eterno, parecia sussurrar segredos de terras além do horizonte, terras onde o impossível se tornava realidade.

Nos primeiros dias de viagem, o vento era favorável e as estrelas se alinhavam como guias imperturbáveis. As ondas balançavam o navio suavemente, criando um ritmo hipnótico que acalmava os corações dos marinheiros. No entanto, logo, o mar, com sua natureza imprevisível, mostrou seu rosto mais sombrio. Uma tempestade surgiu, com um rugido profundo, como um dragão despertando de um sono antigo. As velas rasgaram, o convés se inundou e os homens, em pânico, se apegaram aos mastros e cordas com a esperança de que, ao menos, sobreviveriam àquele furor. Fernão sentiu o frio cortante da água salgada, a força das ondas que pareciam querer engolir o navio inteiro. Seu estômago se revirava, mas seus olhos, firmes como rochas, não conseguiam deixar de olhar para o horizonte. Algo dentro dele, algo além da razão, lhe dizia que a tempestade era apenas o começo de uma jornada muito mais dura.

Foram três dias de tormenta, três dias em que o mundo de Fernão parecia se resumir à luta pela sobrevivência. Quando, finalmente, a tempestade se acalmou, o céu clareou, revelando um mar calmo e profundo, de um azul ainda mais intenso do que o normal. Os marinheiros estavam exaustos, seus rostos suados e pálidos, mas havia algo de novo em seus olhos: um brilho de quem havia sobrevivido a algo além da compreensão humana. Eles tinham enfrentado a fúria do oceano e saído vitoriosos. E, para Fernão, essa vitória parecia o prenúncio de algo maior, um sinal de que ele estava no caminho certo, rumo ao desconhecido, ao impossível.

O tempo passou e o navio cortava as águas do Atlântico como uma lâmina afiada. Os ventos agora estavam mais tranquilos, mas a jornada era longa. Fernão, muitas vezes sozinho no convés durante a noite, começava a sentir algo estranho no ar. Às vezes, ele ouvia um murmúrio distante, como se o próprio mar estivesse falando com ele. Em outras ocasiões, as estrelas pareciam brilhar de maneira diferente, como se estivessem observando-o. Ele tentava ignorar essas sensações, focando no movimento das ondas, na forma como o navio cortava as águas e no canto das aves que, misteriosamente, surgiam no horizonte, voando para o oeste. Eles seguiam sempre para o mesmo ponto, como se soubessem algo que os homens não sabiam. E, a cada dia que passava, Fernão sentia o peso de sua decisão aumentar: ele estava deixando para trás não só a terra, mas também o último fio de esperança de uma vida que jamais poderia ter ao lado de Amélia.

O mar não era apenas uma paisagem; é uma força, um ser que imenso demais para ser totalmente compreendido, mas ao mesmo tempo, alguém com quem Fernão começava a formar uma ligação sentimental, mútua. O oceano trazia consigo não apenas o perigo, mas também a promessa de transformação, de uma reviravolta que poderia mudar o rumo de sua vida. Ele sabia que não poderia voltar atrás. O mar não permite que se volte ao ponto de partida; ele exige algo mais profundo.

Em uma dessas noites, enquanto observava o horizonte, Fernão teve a sensação de que algo se movia nas águas. Não era um simples animal, mas algo maior, mais profundo. O mar estava se mexendo de maneira estranha, quase como se estivesse vivo, respirando debaixo da superfície. Uma luz, tênue e misteriosa, surgiu à distância, cintilando sobre as águas escuras. Para alguns, poderia ser apenas o reflexo da lua, mas para Fernão, era mais do que isso. Era como se aquela luz fosse uma promessa, um farol que o chamava para algo que ele ainda não compreendia. O que quer que fosse, ele sabia que estava se aproximando daquilo que o destino lhe preparava.

"Será que é isso, então?" Ele se perguntou em voz baixa, mais para si mesmo do que para qualquer outro. "Será que estou destinado a encontrar algo além do que os olhos humanos podem ver?"

E assim, enquanto a caravana avançava nas águas desconhecidas, Fernão de Castela seguia sua jornada, sem saber ao certo se ele encontraria o que procurava. Mas uma coisa ele sabia com clareza: o mar não o deixaria em paz até que ele alcançasse o que o destino, em suas mãos, havia reservado para ele.

por João Zanela




domingo, 15 de dezembro de 2024

Tupac

Nas terras altas do Rio Huatanay, aninhado entre picos imponentes e vales ondulados, meu povo prosperou muito antes de os campos de caça começassem a desaparecer. Vivíamos em harmonia com a terra, onde o rio fluía com águas claras e vivificantes, e as florestas fervilhavam de vida selvagem vibrante. O ar estava cheio de sons de pássaros cantando, e a terra sob nossos pés era rica com a generosidade da natureza. Antes dos leitos dos rios cheios de vida serem desviados e secos, vastas florestas se erguem de formas majestosas, e famílias que antes viviam pela obediência à natureza, serem perdidas para a ganância do metal. 

No passado, nós lutamos entre nós, movidos pela indiferença ao outro sobre as vastas terras que chamávamos de lar. Nossos guerreiros se enfrentaram nas densas selvas e através dos grandes rios, buscando vencer uns aos outros, embora a terra em si continuasse sendo o verdadeiro coração da nossa existência. Essas batalhas faziam parte do nosso mundo e, embora deixassem cicatrizes, não era o nosso fim. 

Mas então, tudo mudou. Com a chegada dos espanhóis, nos deparamos com um novo tipo de inimigo — maior do que qualquer um que já havíamos conhecido. No início, nos cativaram pela nossa vaidade, aliando-se a nós e ajudando a derrotar nossos irmãos, a quem considerávamos nossos inimigos. Degolamos nossa união, sabedoria e paz. Então, chegaram as armas de destruição em massa, a pólvora e a gripe, trazendo guerra não apenas aos nossos corpos, mas à própria essência do nosso modo de vida. Sua sede por poder parecia insaciável, e sua fome por terra, riqueza e dominação não conhecia limites. Eram diferentes de qualquer inimigo que havíamos enfrentado antes — invasores estrangeiros, movidos não pela necessidade de sobreviver ou proteger, mas por uma sede cega e inflexível de conquista. Nós, antes divididos, não tivemos condições de nos unir diante dessa força avassaladora, e nossa força não era párea para sua brutalidade e astúcia. O equilíbrio do nosso mundo foi alterado para sempre, e com ele, a alma de nosso povo foi marcada pela cicatriz de sua chegada. 

Foi uma época de devastação, quando a sombra da estrada, um símbolo de conquista e destruição estrangeira, se estendeu sobre nossas almas. Naqueles dias, os bravos Incas, guerreiros ferozes de nossa terra, se levantaram para defender nossa pátria sagrada. Eles pegaram em armas contra Francisco Pizarro, um invasor espanhol cuja sede de conquista não conhecia limites. A batalha foi irremediavelmente desigual e, apesar de sua coragem, foi uma luta que quase erradicou meu povo. O poder dos invasores nos subjugou, e as comunidades outrora existentes foram destruídas e a civilização que outrora existiu, virou tapera. 

Alguns de nós conseguiram escapar para a floresta densa e implacável, tornando-se exilados em nossa própria terra. Famílias que viviam juntas por gerações foram espalhadas e, a cada dia que passava, mais se perdiam. A sabedoria que antes nos unia — a profunda conexão entre nosso corpo, mente e espírito — foi lentamente erodida. Nós nos tornamos estranhos ao próprio conhecimento que havia sustentado nossos ancestrais. A floresta, antes um lugar de refúgio, tornou-se um lembrete do que havíamos perdido: não apenas nosso modo de vida, mas o vínculo sagrado que tínhamos com a terra, os animais e os ritmos do mundo ao nosso redor. 

Nasci alguns anos depois desses acontecimentos, em uma época em que o mundo já havia sido alterado para sempre. Meus pais, ainda crianças quando os espanhóis chegaram, escaparam para o coração da floresta amazônica — fugindo do caos e da destruição. Eles desceram fundo nos vales e ao longo dos rios, seus caminhos marcados por uma história de resistência, medo e sobrevivência. Essas eram trilhas, gravadas na terra por memórias de batalhas perdidas e sonhos despedaçados, mas também carregavam a força daqueles que lutaram para permanecer livres. 

À medida que crescemos, aprendemos a entender a terra da maneira que nossos ancestrais entenderam. A natureza, com seu ritmo e suas leis, tornou-se nossa professora. A floresta com seus segredos e, nos suspiros das folhas, descobrimos como caçar, como encontrar sustento e como viver com a natureza. Entendemos que nossa sobrevivência está entrelaçada com o pulso da terra e, ainda assim, a sombra dos homens brancos — aqueles que buscavam nossas terras — nunca nos deixou. Sua sede de conquista permanecia como uma nuvem escura, sempre presente, sempre ameaçadora, sempre possível 

Nas profundezas da floresta, seguimos trilhas de caça antigas, atravessando a vegetação rasteira espessa onde as árvores se erguem acima de nós vigilantes e silenciosas. Os leitos dos rios, cheios de vida e movimento, alimentam nossa. Aqui, na selva profunda, aprendemos a fazer uma vida possível a partir do que a natureza ainda nos oferece. 

Nossos ancestrais nos visitam na consciência. Eles falam por meio de histórias fragmentadas e perdidas, passadas de geração em geração — histórias de força, de sabedoria, de batalhas travadas e vencidas e de sacrifícios feitos. Essas histórias, embora incompletas, ainda nos guiam, e seus ecos podem ser ouvidos na dança de meu povo. O ritmo daqueles passos antigos, o bater dos pés na terra, é o mesmo de tempos passados. O chão ainda ressoa com a memória de nossos ancestrais. 

Eu sou Tupac e, aos 12 anos de idade, fui iniciado para ser um homem, para defender a minha família, para encontrar o alimento, para dar continuidade à nossa existência, para suportar a dor. Na floresta, aprendemos que a força não era apenas física, mas mental e espiritual. Um homem aprende a ser resiliente, a se dobrar, mas nunca quebrar, a honrar o passado enquanto forja um caminho no presente. 

Nos momentos de silêncio, quando me sento perto do fogo e ouço o vento passando pelas árvores, posso sentir a presença de nossos ancestrais. Sua força flui através da brisa, conectando o passado com o presente. Em nossa memória está o poder de sobreviver, a força para resistir e a esperança de que seguiremos em frente — assim como eles fizeram. Nossa história não acabou. Ela vive em nós, e nós a levamos adiante, passo a passo, dança por dança, ecoando o ritmo dos corações de nossos ancestrais.

por João Zanela

domingo, 8 de dezembro de 2024

Árvore Sombreira

Ao abrir a porta sou recebido pelos primeiros raios de sol, que filtram através das folhas e flores da árvore que fica em frente à casa. A luz dourada se espalha através das flores vibrantes, lançando sombras se movendo entre seus raios que se estendem pelos carros estacionados abaixo, cada um inclinado refletindo o brilho da manhã. Faço uma pausa por um momento e, nesse instante, meus sentidos despertam — lentamente, gradualmente, mas inconfundivelmente. 

As cores ao meu redor parecem mais ricas, mais vívidas, e os sons, antes distantes e abafados, agora ressoam com uma clareza extraordinária. Há um zumbido silencioso no ar, o murmúrio da vida se agitando, e neste momento, reconheço algo profundo: esta não é apenas a chegada da primavera indicando a passagem do tempo; esta é uma experiência, uma essência universal que existe além dos limites do próprio tempo. É uma primavera humana, um reflexo da conexão mais profunda entre a natureza e o mundo visível. Uma força atemporal, algo além dos ciclos que impomos a ela. 

Enquanto estou aqui, entre o presente e o infinito trecho da eternidade, percebo que o que estou testemunhando não é apenas um momento, mas o ritmo muito mais antigo que a vida humana, algo intimamente ligado a ela. Este não é apenas um vislumbre da natureza, mas o pulso visível da própria vida, revelando sua lei eterna, sua constância que não precisa ser medido pelo tique-taque dos relógios ou pela contagem dos dias. Aqui, o tempo não é quantificado pela razão ou propósito; ele é incorporado na luz, na brisa, na presença da sombra — uma experiência que existe no espaço entre a lógica de uma consciência cósmica, e o movimento de uma barquinha real no centro do mar. 

Neste lugar, a pressa do mundo se dissolve. O planejamento da contabilidade e o peso das ações humanas, com suas medições e cálculos rígidos, desaparecem na realidade cármica dos seres. Há uma fluidez que transcende a razão humana, uma força que curva a própria paisagem ao meu redor. As cores e formas da natureza são a verdadeira medida, não do tempo, mas do ser — da própria existência. Aqui, no som silencioso da vida, tudo está alinhado, não em uma progressão linear, mas em um presente eterno onde cada momento se desdobra no próximo, como ondas em uma praia sem fim. E eu também sou parte disso. O próprio tempo se torna elástico, estendendo-se além do alcance mundano da urgência. A este momento, o tempo não é uma progressão linear, mas um desdobramento contínuo, onde passado, presente e futuro converge na singularidade do espaço. Diante de mim, a luz filtrada pelos galhos parece respirar com vida própria, um ritmo mais antigo do que qualquer conceito de medida. Suas bordas brilham suavemente, difundindo-se nos espaços ao redor, e as folhas no chão circulam lentamente na brisa, como se estivessem conversando com o mundo. A brisa também faz parte desse ritmo maior. Ela sussurra verdades tão antigas quanto a terra e tão universais quanto o caminho que se desdobra diante de mim. 

Não é apenas ar; é uma verdade universal, uma linguagem que fala à alma, ignorando o intelecto automático e racional e tocando algo mais profundo. Este caminho — este momento — não é limitado pelo tempo ou lugar, mas existe em seu próprio reino, além do alcance da medição comum, onde tudo, incluindo a luz, é parte de uma força que retorna à atração. Uma presença infinita que remodela e redesenha a paisagem, curvando-se em direção a um horizonte de eventos onde tudo converge — onde tempo e espaço, luz e sombra, são parte de uma lei natural, singular e eterna. 

por João Zanela

domingo, 24 de novembro de 2024

Rio Guamá


Eu caminhava em direção à beira do píer que se estendia sobre o rio, o ar quente e abafado carregando o calor persistente de uma noite de verão em Belém do Pará. Quando me aproximei da beirada do píer, parei por um momento, absorvendo a vastidão da cena diante de mim. A água escura do rio se estendia até onde os olhos podiam alcançar, refletindo o brilho difuso das luzes da cidade, como fragmentos dispersos de um espelho quebrado. A cena, envolta na quietude da noite, tinha algo de sereno, quase onírico. 

Do outro lado do rio, as silhuetas das palafitas surgiam, suas estruturas de madeira suspensas sobre a água lamacenta, desaparecendo nas sombras densas dos manguezais. Era um mundo onde a vida parecia dançar ao ritmo do rio, onde a água não era meramente uma paisagem, mas um fio invisível que conectava as pessoas em tudo ao seu redor, sustentando lhes a existência. 

Sempre fui atraído pela vida dos ribeirinhos. As canoas, firmemente amarradas à margem das casas, pareciam sentinelas silenciosas, aguardando a hora certa para partir em mais uma jornada pelo rio. O cotidiano daqueles que habitam esse lugar parece envolto em rituais profundos: a colheita do açaí, as viagens de pesca ao amanhecer, tudo se entrelaçando no tecido de suas vidas, formando uma cadência que se repete mas nunca é igual. O som suave da água batendo contra os cascos dos barcos de madeira ecoava no ar, acompanhado pelo balanço lento e rítmico das redes de pesca, que se moviam com o vento sob o olhar distante e pálido da lua. 

Era uma vida que parecia eterna e imutável, mas ao mesmo tempo em constante transformação, adaptando-se às marés, às estações e às abundâncias da terra. Há algo profundamente ressoante na natureza cíclica dessa existência. Talvez seja porque também sempre encontrei consolo nas rotinas que fluem como o próprio rio — que mudam com o tempo, que evoluem com as estações. Gosto de imergir em interesses ou hábitos específicos, permitindo que eles definam um período, para então seguir em frente, apenas para retornar mais tarde, quando o ciclo parece se repetir. Esse movimento, esse vai e vem, reflete o fluxo do rio — uma dança constante entre começos e fins, e entre esses momentos, onde o crescimento e a renovação acontecem, muitas vezes sem que percebamos. 

 É por isso que me sinto atraído pela ideia do conhecimento ancestral. Esse saber não é transmitido em grandes gestos ou revelações inesperadas, mas em pequenos momentos íntimos, em lições que se acumulam com o tempo. São experiências compartilhadas, que se vão entrelaçando e tornando-se parte de nós. São trocas silenciosas que criam uma conexão profunda com as raízes daquilo que somos, não em um instante de iluminação, mas ao longo de uma vida inteira. Assim como os ribeirinhos, que passam adiante seu conhecimento sobre as marés, os peixes e as árvores de açaí, nós também carregamos a sabedoria daqueles que vieram antes de nós, como um legado silencioso que, por sua vez, molda nosso próprio caminho. 

 Essa transmissão de sabedoria, essa troca invisível entre gerações, é o que nos une a todos. Ela é o fio invisível que conecta o passado ao futuro, formando nossa identidade de uma maneira imperceptível, mas imensamente profunda. O rio, com seus fluxos e ciclos, é uma metáfora perfeita para essa continuidade. Não importa onde você esteja — seja no começo, no meio ou no fim — você ainda faz parte desse grande fluxo. Por meio desse entendimento, não apenas honramos nossa história, mas também cultivamos a resiliência necessária para enfrentar o que está por vir. Em cada momento, reafirmamos quem somos, traçando os passos daqueles que nos precederam, enquanto simultaneamente plantamos as sementes para as gerações futuras. E assim, retornamos. Retornamos aos nossos rituais, às rotinas e aos rios que atravessam nossas vidas. Cada retorno não é uma repetição simples, mas um aprofundamento. É o reconhecimento de que, como as águas do rio, estamos sempre em movimento, sempre aprendendo e crescendo, sempre retornando ao ponto de partida — ao nascimento de algo novo, algo antigo e algo eterno. 

por João Zanela


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Educação Escolar Indígena


o canário vai voando
até onde sabe cantar
querem índio estudando
e batendo o maracá

de um lado está um mundo
de cacique e de decreto
da aldeia e do governo
de pajé e de projeto

sem o rio e sem a rama
a escola se constrói
sem cantar e sem a dança
muita coisa se destrói

viva viva as crianças
de alegria e muita cor
não vamos esquecer
são pra elas o amor

por João Zanela