Nas terras altas do Rio Huatanay, aninhado entre picos imponentes e vales
ondulados, meu povo prosperou muito antes de os campos de caça começassem a
desaparecer. Vivíamos em harmonia com a terra, onde o rio fluía com águas claras
e vivificantes, e as florestas fervilhavam de vida selvagem vibrante. O ar
estava cheio de sons de pássaros cantando, e a terra sob nossos pés era rica com
a generosidade da natureza. Antes dos leitos dos rios cheios de vida serem
desviados e secos, vastas florestas se erguem de formas majestosas, e famílias
que antes viviam pela obediência à natureza, serem perdidas para a ganância do
metal.
No passado, nós lutamos entre nós, movidos pela indiferença ao outro
sobre as vastas terras que chamávamos de lar. Nossos guerreiros se enfrentaram
nas densas selvas e através dos grandes rios, buscando vencer uns aos outros,
embora a terra em si continuasse sendo o verdadeiro coração da nossa existência.
Essas batalhas faziam parte do nosso mundo e, embora deixassem cicatrizes, não
era o nosso fim.
Mas então, tudo mudou. Com a chegada dos espanhóis, nos
deparamos com um novo tipo de inimigo — maior do que qualquer um que já havíamos
conhecido. No início, nos cativaram pela nossa vaidade, aliando-se a nós e
ajudando a derrotar nossos irmãos, a quem considerávamos nossos inimigos.
Degolamos nossa união, sabedoria e paz. Então, chegaram as armas de destruição
em massa, a pólvora e a gripe, trazendo guerra não apenas aos nossos corpos, mas
à própria essência do nosso modo de vida. Sua sede por poder parecia insaciável,
e sua fome por terra, riqueza e dominação não conhecia limites. Eram diferentes
de qualquer inimigo que havíamos enfrentado antes — invasores estrangeiros,
movidos não pela necessidade de sobreviver ou proteger, mas por uma sede cega e
inflexível de conquista. Nós, antes divididos, não tivemos condições de nos unir
diante dessa força avassaladora, e nossa força não era párea para sua
brutalidade e astúcia. O equilíbrio do nosso mundo foi alterado para sempre, e
com ele, a alma de nosso povo foi marcada pela cicatriz de sua chegada.
Foi uma
época de devastação, quando a sombra da estrada, um símbolo de conquista e
destruição estrangeira, se estendeu sobre nossas almas. Naqueles dias, os bravos
Incas, guerreiros ferozes de nossa terra, se levantaram para defender nossa
pátria sagrada. Eles pegaram em armas contra Francisco Pizarro, um invasor
espanhol cuja sede de conquista não conhecia limites. A batalha foi
irremediavelmente desigual e, apesar de sua coragem, foi uma luta que quase
erradicou meu povo. O poder dos invasores nos subjugou, e as comunidades outrora
existentes foram destruídas e a civilização que outrora existiu, virou tapera.
Alguns de nós conseguiram escapar para a floresta densa e implacável,
tornando-se exilados em nossa própria terra. Famílias que viviam juntas por
gerações foram espalhadas e, a cada dia que passava, mais se perdiam. A
sabedoria que antes nos unia — a profunda conexão entre nosso corpo, mente e
espírito — foi lentamente erodida. Nós nos tornamos estranhos ao próprio
conhecimento que havia sustentado nossos ancestrais. A floresta, antes um lugar
de refúgio, tornou-se um lembrete do que havíamos perdido: não apenas nosso modo
de vida, mas o vínculo sagrado que tínhamos com a terra, os animais e os ritmos
do mundo ao nosso redor.
Nasci alguns anos depois desses acontecimentos, em uma
época em que o mundo já havia sido alterado para sempre. Meus pais, ainda
crianças quando os espanhóis chegaram, escaparam para o coração da floresta
amazônica — fugindo do caos e da destruição. Eles desceram fundo nos vales e ao
longo dos rios, seus caminhos marcados por uma história de resistência, medo e
sobrevivência. Essas eram trilhas, gravadas na terra por memórias de batalhas
perdidas e sonhos despedaçados, mas também carregavam a força daqueles que
lutaram para permanecer livres.
À medida que crescemos, aprendemos a entender a
terra da maneira que nossos ancestrais entenderam. A natureza, com seu ritmo e
suas leis, tornou-se nossa professora. A floresta com seus segredos e, nos
suspiros das folhas, descobrimos como caçar, como encontrar sustento e como
viver com a natureza. Entendemos que nossa sobrevivência está entrelaçada com o
pulso da terra e, ainda assim, a sombra dos homens brancos — aqueles que
buscavam nossas terras — nunca nos deixou. Sua sede de conquista permanecia como
uma nuvem escura, sempre presente, sempre ameaçadora, sempre possível
Nas
profundezas da floresta, seguimos trilhas de caça antigas, atravessando a
vegetação rasteira espessa onde as árvores se erguem acima de nós vigilantes e
silenciosas. Os leitos dos rios, cheios de vida e movimento, alimentam nossa.
Aqui, na selva profunda, aprendemos a fazer uma vida possível a partir do que a
natureza ainda nos oferece.
Nossos ancestrais nos visitam na consciência. Eles
falam por meio de histórias fragmentadas e perdidas, passadas de geração em
geração — histórias de força, de sabedoria, de batalhas travadas e vencidas e de
sacrifícios feitos. Essas histórias, embora incompletas, ainda nos guiam, e seus
ecos podem ser ouvidos na dança de meu povo. O ritmo daqueles passos antigos, o
bater dos pés na terra, é o mesmo de tempos passados. O chão ainda ressoa com a
memória de nossos ancestrais.
Eu sou Tupac e, aos 12 anos de idade, fui iniciado
para ser um homem, para defender a minha família, para encontrar o alimento,
para dar continuidade à nossa existência, para suportar a dor. Na floresta,
aprendemos que a força não era apenas física, mas mental e espiritual. Um homem
aprende a ser resiliente, a se dobrar, mas nunca quebrar, a honrar o passado
enquanto forja um caminho no presente.
Nos momentos de silêncio, quando me sento
perto do fogo e ouço o vento passando pelas árvores, posso sentir a presença de
nossos ancestrais. Sua força flui através da brisa, conectando o passado com o
presente. Em nossa memória está o poder de sobreviver, a força para resistir e a
esperança de que seguiremos em frente — assim como eles fizeram. Nossa história
não acabou. Ela vive em nós, e nós a levamos adiante, passo a passo, dança por
dança, ecoando o ritmo dos corações de nossos ancestrais.
por João Zanela
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