domingo, 15 de dezembro de 2024

Tupac

Nas terras altas do Rio Huatanay, aninhado entre picos imponentes e vales ondulados, meu povo prosperou muito antes de os campos de caça começassem a desaparecer. Vivíamos em harmonia com a terra, onde o rio fluía com águas claras e vivificantes, e as florestas fervilhavam de vida selvagem vibrante. O ar estava cheio de sons de pássaros cantando, e a terra sob nossos pés era rica com a generosidade da natureza. Antes dos leitos dos rios cheios de vida serem desviados e secos, vastas florestas se erguem de formas majestosas, e famílias que antes viviam pela obediência à natureza, serem perdidas para a ganância do metal. 

No passado, nós lutamos entre nós, movidos pela indiferença ao outro sobre as vastas terras que chamávamos de lar. Nossos guerreiros se enfrentaram nas densas selvas e através dos grandes rios, buscando vencer uns aos outros, embora a terra em si continuasse sendo o verdadeiro coração da nossa existência. Essas batalhas faziam parte do nosso mundo e, embora deixassem cicatrizes, não era o nosso fim. 

Mas então, tudo mudou. Com a chegada dos espanhóis, nos deparamos com um novo tipo de inimigo — maior do que qualquer um que já havíamos conhecido. No início, nos cativaram pela nossa vaidade, aliando-se a nós e ajudando a derrotar nossos irmãos, a quem considerávamos nossos inimigos. Degolamos nossa união, sabedoria e paz. Então, chegaram as armas de destruição em massa, a pólvora e a gripe, trazendo guerra não apenas aos nossos corpos, mas à própria essência do nosso modo de vida. Sua sede por poder parecia insaciável, e sua fome por terra, riqueza e dominação não conhecia limites. Eram diferentes de qualquer inimigo que havíamos enfrentado antes — invasores estrangeiros, movidos não pela necessidade de sobreviver ou proteger, mas por uma sede cega e inflexível de conquista. Nós, antes divididos, não tivemos condições de nos unir diante dessa força avassaladora, e nossa força não era párea para sua brutalidade e astúcia. O equilíbrio do nosso mundo foi alterado para sempre, e com ele, a alma de nosso povo foi marcada pela cicatriz de sua chegada. 

Foi uma época de devastação, quando a sombra da estrada, um símbolo de conquista e destruição estrangeira, se estendeu sobre nossas almas. Naqueles dias, os bravos Incas, guerreiros ferozes de nossa terra, se levantaram para defender nossa pátria sagrada. Eles pegaram em armas contra Francisco Pizarro, um invasor espanhol cuja sede de conquista não conhecia limites. A batalha foi irremediavelmente desigual e, apesar de sua coragem, foi uma luta que quase erradicou meu povo. O poder dos invasores nos subjugou, e as comunidades outrora existentes foram destruídas e a civilização que outrora existiu, virou tapera. 

Alguns de nós conseguiram escapar para a floresta densa e implacável, tornando-se exilados em nossa própria terra. Famílias que viviam juntas por gerações foram espalhadas e, a cada dia que passava, mais se perdiam. A sabedoria que antes nos unia — a profunda conexão entre nosso corpo, mente e espírito — foi lentamente erodida. Nós nos tornamos estranhos ao próprio conhecimento que havia sustentado nossos ancestrais. A floresta, antes um lugar de refúgio, tornou-se um lembrete do que havíamos perdido: não apenas nosso modo de vida, mas o vínculo sagrado que tínhamos com a terra, os animais e os ritmos do mundo ao nosso redor. 

Nasci alguns anos depois desses acontecimentos, em uma época em que o mundo já havia sido alterado para sempre. Meus pais, ainda crianças quando os espanhóis chegaram, escaparam para o coração da floresta amazônica — fugindo do caos e da destruição. Eles desceram fundo nos vales e ao longo dos rios, seus caminhos marcados por uma história de resistência, medo e sobrevivência. Essas eram trilhas, gravadas na terra por memórias de batalhas perdidas e sonhos despedaçados, mas também carregavam a força daqueles que lutaram para permanecer livres. 

À medida que crescemos, aprendemos a entender a terra da maneira que nossos ancestrais entenderam. A natureza, com seu ritmo e suas leis, tornou-se nossa professora. A floresta com seus segredos e, nos suspiros das folhas, descobrimos como caçar, como encontrar sustento e como viver com a natureza. Entendemos que nossa sobrevivência está entrelaçada com o pulso da terra e, ainda assim, a sombra dos homens brancos — aqueles que buscavam nossas terras — nunca nos deixou. Sua sede de conquista permanecia como uma nuvem escura, sempre presente, sempre ameaçadora, sempre possível 

Nas profundezas da floresta, seguimos trilhas de caça antigas, atravessando a vegetação rasteira espessa onde as árvores se erguem acima de nós vigilantes e silenciosas. Os leitos dos rios, cheios de vida e movimento, alimentam nossa. Aqui, na selva profunda, aprendemos a fazer uma vida possível a partir do que a natureza ainda nos oferece. 

Nossos ancestrais nos visitam na consciência. Eles falam por meio de histórias fragmentadas e perdidas, passadas de geração em geração — histórias de força, de sabedoria, de batalhas travadas e vencidas e de sacrifícios feitos. Essas histórias, embora incompletas, ainda nos guiam, e seus ecos podem ser ouvidos na dança de meu povo. O ritmo daqueles passos antigos, o bater dos pés na terra, é o mesmo de tempos passados. O chão ainda ressoa com a memória de nossos ancestrais. 

Eu sou Tupac e, aos 12 anos de idade, fui iniciado para ser um homem, para defender a minha família, para encontrar o alimento, para dar continuidade à nossa existência, para suportar a dor. Na floresta, aprendemos que a força não era apenas física, mas mental e espiritual. Um homem aprende a ser resiliente, a se dobrar, mas nunca quebrar, a honrar o passado enquanto forja um caminho no presente. 

Nos momentos de silêncio, quando me sento perto do fogo e ouço o vento passando pelas árvores, posso sentir a presença de nossos ancestrais. Sua força flui através da brisa, conectando o passado com o presente. Em nossa memória está o poder de sobreviver, a força para resistir e a esperança de que seguiremos em frente — assim como eles fizeram. Nossa história não acabou. Ela vive em nós, e nós a levamos adiante, passo a passo, dança por dança, ecoando o ritmo dos corações de nossos ancestrais.

por João Zanela

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