domingo, 24 de novembro de 2024

Rio Guamá


Eu caminhava em direção à beira do píer que se estendia sobre o rio, o ar quente e abafado carregando o calor persistente de uma noite de verão em Belém do Pará. Quando me aproximei da beirada do píer, parei por um momento, absorvendo a vastidão da cena diante de mim. A água escura do rio se estendia até onde os olhos podiam alcançar, refletindo o brilho difuso das luzes da cidade, como fragmentos dispersos de um espelho quebrado. A cena, envolta na quietude da noite, tinha algo de sereno, quase onírico. 

Do outro lado do rio, as silhuetas das palafitas surgiam, suas estruturas de madeira suspensas sobre a água lamacenta, desaparecendo nas sombras densas dos manguezais. Era um mundo onde a vida parecia dançar ao ritmo do rio, onde a água não era meramente uma paisagem, mas um fio invisível que conectava as pessoas em tudo ao seu redor, sustentando lhes a existência. 

Sempre fui atraído pela vida dos ribeirinhos. As canoas, firmemente amarradas à margem das casas, pareciam sentinelas silenciosas, aguardando a hora certa para partir em mais uma jornada pelo rio. O cotidiano daqueles que habitam esse lugar parece envolto em rituais profundos: a colheita do açaí, as viagens de pesca ao amanhecer, tudo se entrelaçando no tecido de suas vidas, formando uma cadência que se repete mas nunca é igual. O som suave da água batendo contra os cascos dos barcos de madeira ecoava no ar, acompanhado pelo balanço lento e rítmico das redes de pesca, que se moviam com o vento sob o olhar distante e pálido da lua. 

Era uma vida que parecia eterna e imutável, mas ao mesmo tempo em constante transformação, adaptando-se às marés, às estações e às abundâncias da terra. Há algo profundamente ressoante na natureza cíclica dessa existência. Talvez seja porque também sempre encontrei consolo nas rotinas que fluem como o próprio rio — que mudam com o tempo, que evoluem com as estações. Gosto de imergir em interesses ou hábitos específicos, permitindo que eles definam um período, para então seguir em frente, apenas para retornar mais tarde, quando o ciclo parece se repetir. Esse movimento, esse vai e vem, reflete o fluxo do rio — uma dança constante entre começos e fins, e entre esses momentos, onde o crescimento e a renovação acontecem, muitas vezes sem que percebamos. 

 É por isso que me sinto atraído pela ideia do conhecimento ancestral. Esse saber não é transmitido em grandes gestos ou revelações inesperadas, mas em pequenos momentos íntimos, em lições que se acumulam com o tempo. São experiências compartilhadas, que se vão entrelaçando e tornando-se parte de nós. São trocas silenciosas que criam uma conexão profunda com as raízes daquilo que somos, não em um instante de iluminação, mas ao longo de uma vida inteira. Assim como os ribeirinhos, que passam adiante seu conhecimento sobre as marés, os peixes e as árvores de açaí, nós também carregamos a sabedoria daqueles que vieram antes de nós, como um legado silencioso que, por sua vez, molda nosso próprio caminho. 

 Essa transmissão de sabedoria, essa troca invisível entre gerações, é o que nos une a todos. Ela é o fio invisível que conecta o passado ao futuro, formando nossa identidade de uma maneira imperceptível, mas imensamente profunda. O rio, com seus fluxos e ciclos, é uma metáfora perfeita para essa continuidade. Não importa onde você esteja — seja no começo, no meio ou no fim — você ainda faz parte desse grande fluxo. Por meio desse entendimento, não apenas honramos nossa história, mas também cultivamos a resiliência necessária para enfrentar o que está por vir. Em cada momento, reafirmamos quem somos, traçando os passos daqueles que nos precederam, enquanto simultaneamente plantamos as sementes para as gerações futuras. E assim, retornamos. Retornamos aos nossos rituais, às rotinas e aos rios que atravessam nossas vidas. Cada retorno não é uma repetição simples, mas um aprofundamento. É o reconhecimento de que, como as águas do rio, estamos sempre em movimento, sempre aprendendo e crescendo, sempre retornando ao ponto de partida — ao nascimento de algo novo, algo antigo e algo eterno. 

por João Zanela


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