sábado, 4 de janeiro de 2025

O Alistamento de Fernão

 


No clarear cinzento do dia, o vento soprava forte, cortando a pele como lâminas afiadas, e o cheiro de maresia impregnava o ar, trazendo com ele o presságio de algo grande, algo que alteraria o curso das vidas que se preparavam para partir. Com as mãos calejadas pelo trabalho diário nas redes, sentiu o peso da decisão em seu peito como um peso de chumbo. Ele não era mais o simples pescador da vila costeira. Aquele mar que sempre fora seu companheiro agora o chamava para o desconhecido.

Aquela manhã não era diferente de outras em que os pescadores se reuniam no cais, prontos para lançar suas redes ao mar. Mas algo se desenrolava nas sombras, uma mudança no ar que tornava o normal algo de outro mundo. A expedição que se preparava para zarpar estava sendo formada, e as palavras de quem se atrevia a falar nos mercados e tavernas indicavam que grandes viagens estavam prestes a ser feitas. A esperança de riquezas, terras desconhecidas e glórias para quem se aventurasse além do horizonte fazia com que os mais ousados se alinhassem. E diante da dor que apertava seu coração, tomou sua decisão: partida.

Ao chegar no cais, as primeiras imagens que viu foram de homens diversos, cujos rostos carregavam histórias de marginalidade e ambição. Não eram mais os rostos familiares dos pescadores que ele conhecia, nem os rostos dos marinheiros que cruzavam ocasionalmente o litoral. Eram homens com olhos vazios e corações endurecidos, muitos dos quais pareciam carregar mais o peso de suas condenações do que o brilho das esperanças de um novo começo. O vento soprava com um odor diferente naquele dia, como se as marés trouxessem com elas algo mais sombrio e, ao mesmo tempo, irresistível.

Lá, entre os outros, viu figuras que eram ao mesmo tempo fascinantes e assustadoras. Um grupo de degredados, homens que haviam sido expulsos da sociedade, cujas vestes manchadas de sujeira e suor escondiam os estigmas de seus desvios passados. Alguns se moviam uma sutileza soturna, outros com um olhar vazio de quem sabia que não havia mais nada a perder. Mais afastado, um mercenário com cicatrizes de batalhas passadas estava em pé, ajustando sua espada, enquanto observava impávido todo movimento estacionado em sua atenção. Seu olhar era calmo e sua postura silenciosa, como se soubesse que aquele oceano, com todos os seus mistérios, não representava um desafio maior de ter vivido a degeneração humana de batalhas passadas. Não muito longe dali um marceneiro, com as mãos ásperas e o olhar tímido de quem sempre trabalhou na solidão das oficinas, mexia em uma das cordas do navio, como se esperasse encontrar ali o seu lar conhecido.

Era um cenário de homens falidos, homens fugindo de algo, ou buscando propósitos maiores que sua própria ambição e orgulho. Alguns, como os bandidos fugitivos da justiça, viam naquela viagem uma chance de escapar das correntes impostas pelas suas ações. Outros, como os mercenários, queriam oportunamente vender sua lealdade, em troca de riqueza e poder. Todos, no entanto, estavam unidos por uma única razão: a promessa do desconhecido além-mar, onde a redenção e as riquezas pareciam estar à espera de quem ousasse atravessar o vasto oceano, e enfrentar o conforto e estabilidade dos ingênuos.

Ele, que sempre vivera à sombra do mar, sem nunca questionar sua posição ou seu destino, agora estava diante de um oceano de possibilidades e de destinos que se cruzavam. Mas a sua decisão estava tomada. Ele não era como eles. Ele estava ali por algo mais simples e profundo: a esperança de encontrar sua liberdade, à qual colocou nas mãos da impossibilidade sonhada.

Ao se aproximar do oficial responsável pelo alistamento, sentiu a tremedeira nas mãos, um reflexo de sua própria insegurança diante da grandeza do que estava prestes a fazer. O homem, com o semblante severo e a capa de comandante de expedições, olhou-o com um olhar inquisitor. "Você está ciente do que vai enfrentar?", perguntou o oficial, sem disfarçar o ceticismo. O marinheiro sentiu o peso daquela pergunta, como uma imensa corrente presa aos seus pés, mas, com um olhar firme, respondeu: "Estou ciente, senhor.”

O alistamento foi breve. Com o coração batendo forte e o peso do futuro nas costas, recebeu seu posto: vigia noturna. Um trabalho solitário, mas necessário, e que simbolizava o tipo de sacrifício que ele estava disposto a fazer. Conforme se afastava, a visão do cais com seus homens tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais a ele o acompanhava. Ele sabia que, ao deixar para trás a costa familiar, se lançava em um mar de incertezas, onde o destino seria escrito pelas mãos do vento, das ondas e da própria coragem. Ele, como os outros, já não pertencia mais à terra. Eles estavam todos em busca de algo que só o mar poderia oferecer: a possibilidade de encontrar um novo começo.

Fernão olhou para o horizonte. O mar, sempre imprevisível, parecia chamá-lo com sua imensidão. E assim, com o coração pesado, mas decidido, ele subiu a bordo, sabendo que não havia mais volta.

O seu destino, agora, estava no oceano, e sua busca, em um porto seguro.

por João Zanela

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